21 de março de 2005
Para não dizerem que não falei de flores...
Minha flor minha flor minha flor.
Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro.
Minha peônia.
Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão.
Minha gérbera.
Minha clívia.
Meu cimbídio.
Flor flor flor.
Floramarílis.
Floranêmona.
Florazálea.
Clematite minha.
Catléia delfínio estrelítzia.
Minha hortensegerânea.
Ah, meu nenúfar.
Rododendro e crisântemo e junquilho meus.
Meu ciclâmen.
Macieira-minha-do-japão.
Calceolária minha.
Daliabegônia minha.
Forsitiaíris tuliparrosa minhas.
Viole ta... Amor-mais-que-perfeito.
Minha urze.
Meu cravo- pessoal-de-defunto.
Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.
Carlos Drummond de Andrade
Come, 'mor, Arte!
ARTE POÉTICA
Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.
Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.
Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.
Hélia Correia
Neste dia...
todo ele de verdade
para dizer em cada linha
o que vai dentro de mim
A inspiração foi serena
mas pouca a habilidade
Deixo uma grande entrelinha
E o poema fica assim
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Dia primo de primavera
e da poesia
da rosa dos ventos
do mundo...
18 de março de 2005
Agarra o vento!...
(en el que nacieron las ideas)
sin ninguna idea.
(Y así tenerlas todas.)
António Salinas
E logo hoje que me sinto sem me saber dizer, quando tanto me cresce por dentro...
O indizível espuma-se no vento e o que fica rebenta na areia como uma onda no peito.
E eu que só procurava um silêncio partilhado...
Não chego a saber se este mar me entende...
17 de março de 2005
Sobre nada...
Imaginar marginal ao sol da baía e boa viagem.
Ainda não me soam as horas do manso apetite e vou esperar que me pique um motivo para abrir o farnel.
11 de março de 2005
Margens
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Fernando Pessoa
E eu que sou dado a destemperos de memória acordo com as mãos sujas por ter andado toda a noite a escrever o teu nome nas paredes.
Aprendi com as garças o cheiro da terra lavrada e a dança dos salgueiros ao vento na beira do meu rio. Aprendi a contar nas margens e hoje voltei lá e derramei-me.
10 de março de 2005
Grave...
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
(...)
Sophia de Mello Breyner Andresen
Às vezes distraio-me e deixo-me sentir saudades... Assim como quem só repara nos atacadores desapertados por andar sempre a pisá-los e a tropeçar em tudo.
E hoje deu-me uma grande saudade de voar.
22 de fevereiro de 2005
Zê... de zarpar
Este contar vai fazer um ano um dia destes.
Acho que vou fazer aqui umas obras e pintar o barco...
Depois vou virar a proa para outros horizontes.
Xis... de Xalavar
Nunca entendi muito bem porque se diz, quando nos enfastiamos com qualquer coisa, «vou apanhar ar...». Muito melhor é apanhar gambuzinos em horário nobre porque nem tudo o que vem à net é trabalho.
Vê!... de Vejam bem que não há só gaivotas em terra
E nunca se sabe bem quem lá vem quando se dorme ao relento à espera de esperar que seja bem vindo quem vier por bem...
O que faz falta é gente madura a animar a praça e deixar as estátuas com o cu a arder.
E depois foi o vento e também as marés...
2 de fevereiro de 2005
Uuuuuh!... de Universo
Estou à deriva no Universo.
25 de janeiro de 2005
Tê... de Tempo
Estado do tempo:
Prevê-se tempo frio para amanhã.
Mas... Quando está frio no tempo do frio o Caeiro acha isso agradável por ser natural.
Só pode ser louco quem se arroja contra ventos e marés, seja em que rumo for. Inútil.
12 de janeiro de 2005
Esse... de Sagres
E esvoaçaram lendas, inventadas na hora,
que falam de luas e poentes a namorar num solstício,
e dum vento insólito capaz de se deter no tempo exacto
de um beijo.
Vim em busca de outros segredos feiticeiros
e encontro-os impressos na falésia.
São grafitti de mar na demora do tempo.
Dizem-me que na nervura das marés
se escutam cantos berberes
encostando o ouvido às rochas.
E contam histórias de outros antigos guerreiros
que apenas tinham por bandeira
o livre caminhar.
Todos pararam aqui.
São claras as marcas
de um clã-destino convertido aos amores proibidos.
Encho o peito,
telúrico,
e sinto que a terra acaba ali.
Solto o olhar ao fio do horizonte
e sou tentado a ir com ele.
O perigo, são mesmo as sereias.
A melopeia encantatória atrai-nos ao abismo.
Deixou assim escrito na pedra,
um poeta peregrino que pensava ter chegado a Ítaca.
E o abismo é sagrado.
Gregório Salvaterra. Contador de gaivotas e poeta público (*)
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(versão em inglês por Jill Gerrich)
Look – the birds call to me – the sacred abyss!
And they flutter and flap fables, invented on the spot, telling about moons and sunsets loving each other at a solstice, and an extraordinary wind which can stop just in the time it takes for a kiss.
I came in search of other bewitching secrets and I find them imprinted on the cliff. They are the sea’s grafitti with the passage of time. They tell me that Berber songs can be heard amongst the crashes of the waves by pressing one’s ear to the rocks. And they tell stories about other ancient warriors who only had to place the flag to walk free.
All had stopped here.
The marks of a secret convert to forbidden loves are clear.
I inhale deeply, telluric, and feel that Earth ends there. I shoot a glance at the line of the horizon and I am tempted to follow it.
The mermaids are the real danger. Their enchanting music draws us towards the abyss.
A pilgrim poet who thought he had arrived at Ithaca left this written on the stone.
And the abyss is sacred.
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Este texto foi publicado em 15 de Novembro de 2003, na revista Golfe a Sul (Dossiers Especiais ), suplemento do semanário EXPRESSO.
7 de janeiro de 2005
Erre (ou Rê)... de Revolução
Até porque está sol.
Sentei-me na esplanada e mandei vir
uma cerveja.
“E tremoços... Faxavor.”
“Não temos tremoços.”
Afinal ainda não estão criadas as condições para a Revolução.
Quê... de Quase
(...) quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase.
José Saramago
Por pouco não me afoguei numa torrente de palavras clandestinas...
6 de janeiro de 2005
Pê... de Palavra-Pedra
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Ali na praia, virada ao sul da ilha, o sol de inverno riscava o espelho frio e rugoso. As ondas joeiravam roladinhos de lava cantante a milhares de vozes. Ainda não consegui convencer ninguém, mas tenho a certeza que ouvimos entoar o nome de alguém em quem pensemos, sobretudo se estivermos a sentir uma grande saudade. Está mesmo a dizer...
E quase me distraía do que estava laboriosamente a fazer. Escolher, entre tantos milhares, aquelas cinco pedrinhas que vou levar e que contarão esta estória por inteiro.
17 de dezembro de 2004
Oh!... O ó de Olhar
Ó que eco há aqui!...
Neste espaço a si próprio condenado
Dum momento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar
....................................
Com a tristeza acender a alegria
Com a miséria atear a felicidade
E no céu inocente da visão
Fazer pulsar um pássaro por vir
Fazer voar um novo coração
Alexandre O´Neill
Acompanha-me desde a infância a ideia de as coisas serem o que delas vemos. Este “ver” está muito para além do que os olhos vêem, porque se liga às coisas já vistas e também às imaginadas, ao estado de quem as vê, a uma disposição interior para ver. Em tempos chamei a este conjunto complexo simplesmente “olhar”. O meu “olhar”. Isto permitiu-me chegar também ao “olhar” dos outros.
Um dia li que um tal Moreno se tinha visto, quando menino, a voar de cima de um armário. Para a história ficou que inventou o psicodrama e ele próprio rapidamente se esqueceu das dores ou eventuais fracturas que isso lhe custou ao estatelar-se no chão. Mais tarde terá enunciado uma ideia ao mesmo tempo cruel e deliciosa mais ou menos assim:
(...)
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
(...)
Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.
e colocá-los-ei no lugar dos meus;
Assim, até a coisa comum serve o silêncio
Permaneço. Olho o mar e ele devolve-me o seu olhar do mundo.
7 de dezembro de 2004
Ene (ou Nê)... de Neblina
É como a indefinição das memórias e das esperas.
Um sabor de pele algo entre o sal e a canela....
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Levanto a gola do casaco e peço ao empregado da esplanada:
- Um Godot bem quente, por favor!...
- Com certeza. Mas vai ter que esperar...
- Ainda bem. É para isso que cá estou.
Espero.
12 de novembro de 2004
Eme (ou Mê)... de Marejar
A maré de sizígia traz à costa outros dizeres como se de repente o mundo se combinasse em desgraças. É ali, no areal molhado, hoje mais amplo da vazante que sinto o sal das lágrimas. Em vão procuro os passos testemunhos de gritos e silêncios sofridos.”
Começara assim, num dia seguido à grande lua (aquela que se pôs à sombra durante uma noite quase inteira) porque o mar também traz notícias infelizes. Mas as marés renovam-se e trazem também mapas e destinos de apetecer. Por isso, as melodias tornam-se brilhantes e ensaiam descantes com o pensar.
Deve ser por isso que gosto do mar...
Nota analfabética e completamente dentro do mar:
Um doce piar ao ouvido disse-me que chove há uma semana, lá onde a chuva é sempre festa.
Lembrei-me de uma canção do Sérgio que até parece ter sido escrita hoje.
Há quantos meses não chove
parece que nove parece que novembro
se chover nos três que resta
parece que há festa
parece que há festa
Beleza de Cabo Verde não se vê do avião
país que é novo tem sede
do que fazer com o pão
este socalco foi milho
e aquelas pedras, feijão
ensinava a mãe ao filho
repete o filho ao irmão
Há quantos meses não chove
parece que nove parece que novembro
se chover nos três que resta
parece que há festa
parece que há festa
Beleza de Cabo Verde
está na maneira de olhar
árvore que tinha sede
foi-se também emigrar
nela encostado, o emigrante
trinca do fruto da morna
não há nenhum que não cante
a vez em que à terra torna
Há quantos meses não chove
parece que nove parece que novembro
se chover nos três que resta
parece que há festa
parece que há festa
Beleza de Cabo Verde
está na razão de cantar
música não mata a sede
mas se pudesse matar
com água por melodia
e por batuque irrigado
verde, o verde nasceria
no solo sacrificado
Chuva já chove
já chuva choveu
vai chover já
(Sérgio Godinho)
26 de outubro de 2004
Ele (ou Lê)... de Ler na Areia
“Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou fim.”
(Jorge Luís Borges)
Parei um momento a pensar quantas páginas faltarão para o infinito...
Deve ser mais ou menos o tamanho da liberdade que desejo que caiba dentro de mim. E dou comigo a enunciar um improvável teorema enfeitado de corolários míticos: Aprender o infinito é condição sine qua non para liberdade.
Recito de cor alguns corolários mais coloridos:
(um) O inverso é sempre e infinitamente verdadeiro
(outro) Liberdade que vai à frente é a que abre as primeiras portas, sendo que elas são infinitas
(outro mais) A liberdade é infinitamente maior que a maior opressão
(e este) A memória é limitada e não se lembra de todos.
«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»
(José Cardoso Pires)
As escritas são efémeras. Apagam-se depois de alguém as ler.
E assim se justifica o ofício de contador.