31 de outubro de 2007

livreiros entre outras coisas ( I I )


Descobri a Culsete há pouco. Ou melhor, ela é que veio ter comigo dentro de um livrinho que já não se vê por aí nos escaparates e que conta mistérios da nossa existência. A Culsete veio com amor por mão própria e, mesmo antes de lá ter entrado já lhe tinha apreendido o fascínio. Não tive ainda tempo para a explorar. Estive lá uma vez e muito pouco tempo. Mal passei da entrada e já acontecia tanta coisa. Senti-me como na entrada de uma misteriosa gruta onde apetece voltar com tempo para explorar demoradamente. Ali os livros têm o cheiro facilmente reconhecido por quem gosta dos livros e dos sítios deles. E tem um livreiro que é dono e é capaz de saber o sítio exacto de cada livro apenas pelo título, ou pelo autor ou, até mesmo por uma palavra solta do título. Foi na altura da divulgação do Nobel da Literatura e, confesso que nunca tinha lido nada nem sequer ouvido falar em Doris Lessing, mal falámos no assunto e se tinha alguma coisa dela vimo-lo desaparecer por detrás de uma estante, baixar-se e levantar-se já com um livro na mão.


Só tenho este... (um título que não me entusiasmou por aí além e que não retive sequer).


Entretanto prosseguíamos na conversa em que falava do seu percurso com os livros e a leitura e a animação de leitura comentada com grupos de operários até que a A. pergunta por um livro que fala de uma menina cega. Não sabia dizer o título nem o autor, mas isso não impediu de em segundos ter na mão um livro protegido por um invólucro de celofane a que limpou o pó com um pano antes de o rasgar. O livro assim pedido era "Helen, a menina do silêncio e da noite" de Anne Marchon (Desabrochar–Editorial, 1988) , uma obra invulgar incorporando a versão em Braille e uma cassete audio. Foi com visível e partilhada emoção que se virou para A. :
Que idade tens?
Onze.
Olha, quando este livro saiu ainda não eras nascida e a minha filha tinha a tua idade. O primeiro exemplar foi para ela. Este é o último. É para ti.
Nesta altura já a emoção tomava conta da gente, capaz de nos embargar a voz. A C. quis saber o preço que iria pagar por aquela raridade, mas também, pareceu-me, porque temeu que ele quisesse oferecer o livro a A.
O preço é o que menos importa num livro. Quando se quer muito uma coisa não se pergunta o preço.
Depois deixou-nos ver a etiqueta branca colada na capa com um preço de antigamente: 1300$00.
É isto em euros, mais IVA. Sou livreiro e não alfarrabista. Era o preço na altura e não actualizo. São sete euros e oitenta e cinco.

Era sábado, mais do que horas de almoço. Horas de fechar a livraria. Veio conosco até à porta e, depois de nos despedirmos com a cumplicidade de quem viveu um momento extraordinário em comum, acendeu o cigarro que mantivera ao canto da boca durante todo este tempo.

Imagem daqui

30 de outubro de 2007

Outonomia


Vens lembrar-me o tempo em que nascem coisas belas.
E semeias assim as palavras que são sementes e depressa se incendeiam em flor.
Obrigado.

Já flutuavas aqui sobre a terra e sobre o mar há uns dias e ainda não tinha escrito nada. E não sei que palavras bastem para o gosto que as tuas me dão.
Leio-te nas cores todas, mesmo que risque pouco.

Eu pensava que já sabia umas coisas de blogues...
Ainda não descobri como é que se faz um post com o cheiro da terra húmida e das frutas e dos salgueiros dos rios e dos ventos do levante e dos doces de mãe e do pão quente e da serra e do mar...
Vê lá se me ensinas.

Tenho esperança que nasça aqui uma acácia rubra.

16 de outubro de 2007

livreiros entre outras coisas ( I )



Há dias entrei numa livraria em Setúbal e, entretido a ver uns cadernos e uns dossiês antigos, dei por mim a escutar a conversa entre o livreiro e uma família. Uma menina perguntou o que era o IVA.

O dono da livraria, senhor a caminho dos setenta, figura esguia e olhos muito vivos, virou-se para a menina como se tudo o resto deixasse de ter importância e a hora de fechar para almoço (era sábado) pudesse ser atirada lá mais para a frente e dispôs-se a explicar a uma criança de cinco ou seis anos o que era o Imposto Sobre o Valor Acrescentado. E fê-lo de tal forma que até os adultos (entre eles um avô) ficaram a saber. A criança só não percebeu porque se chamava IVA ao imposto. Possivelmente tem algum coleguinha de infantário chamado Ivo e a coisa estava a fazer-lhe confusão, pensei eu.

O livreiro então levou-a para junto de uma mesa, pegou num papel e numa caneta e perguntou:


Como te chamas?
Irene.
Irene quê?
Irene Marques.
Então se eu escrever aqui um I e um M, as pessoas que te conhecem sabem que és tu. Com o IVA é o mesmo..., continuou ele até concluir a explicação.
E lá se despediram com o livreiro a expressar as saudades que também tem dos netos.

Depois ficámos ali a sós ainda uns minutos e não me lembro como lá fomos parar, mas seguramente relacionado com a dificuldade de uma livraria ter tudo o que um cliente pode procurar, falávamos da profusão editorial dos dias de hoje e do muito lixo que por aí circula. Surpreendeu-me ama vez mais quando me fitou (com o cigarro apagado ao canto da boca que mantinha desde que o vi) e me disse:
Sabe? Também já pensei que isso era mau. Tudo se editava, muita coisa sem qualidade... mas depois pensei que teria que haver algo de bom nisso. Há muita palha e pouco grão? Temos que procurar melhor; o grão está lá!

Ficámos por ali porque entretanto chegaram a C e a A e começou outro episódio que merece um outro poste.

7 de outubro de 2007

Hoje

Pode ter sido pelo caminho da pele que chegámos para ler nos olhos um do outro coisas que nem um nem outro sabíamos lá haver.
Mas os dedos nasceram lá longe e andaram errantes por aí carregados de estórias e de repente (não mais que de repente, diria o poeta) souberam-se ávidos de abraços.
E os abraços cresceram com outros abraços e também no abraçar das belezas do mundo. E foram viagem e alegria e festa e força regeneradora quando algo em nós adoecia.
Foi bom voltar aos beijos de areia e mar