25 de setembro de 2010

Uma letrita capaz de mudar tudo...



Faltava-me ver e fui hoje. Acho que foi a primeira vez que me sentei sozinho numa sala de cinema e tirando um ou outro pormenor, o filme nem me deu tempo para pensar muito nisso.
Sabemos todos que o cinema tem esta magia de não nos mostrar apenas um filme. Enquanto vemos o que passa no ecran passam dentro de nós inúmeros filmes. Mas, até nisso O segredo dos teus olhos é um bom aliado e faz frequentemente isso com o espectador, não só nas narrativas sobrepostas como na forma. Também se reconhecem ali uma data de filmes (policial, acção, drama) e tão depressa parece cinema americano como europeu. Na realidade, este filme não inventa nada e também não é preciso para ser um grande filme que nos toca e agarra pelas nossas dúvidas íntimas.
Dos diálogos ficam-nos por vezes umas ideias bailarinas. A frase (cito de memória) pode mudar-se de tudo, menos de paixão é uma das emblemáticas, mas a que guardei foi a que diz se podes escolher as memórias que guardas fica com as boas.
O final é para mim impressionante. Numa espécie de paráfrase de cena final de filme policial revela-se, não o assassino que foi descoberto há muito, mas, numa síntese espectacular, como se pode mudar o medo em amor. Com a força de uma letrita corajosa o medo diz-se amor.

24 de setembro de 2010

Trabraço e bicicleta

De vez em quando tenho uns ataques de espirros. Durante cerca de dez minutos espirro exuberantemente uma média de catorze espirros (sim, até já fiz uma estatística) e há sempre alguém entendido por perto que assegura que é alergia, ou então se for mesmo especalista diagnostica logo uma rinite alérgica. Eu, logo que posso, aproveito uma pausa entre dois espirros e respondo que não é nada alergia e que a única alergia que tenho é a trabalho. Por acaso é uma grande mentira, apesar de me assumir como preguiçoso militante e ainda assim mais militante que preguiçoso se é que alguém vai entender isto.
Pois eu que tanto peroro a favor da preguiça ando agora tão abraçado ao que geralmente se chama trabalho. E o mais grave é que estou a gostar apesar do cansaço desta primeira semana com aulas.
Rememoreei este sabor das aulas, do desafio ali frente aqueles jovens, a tentar contagiá-los com o entusiasmo necessário para que as aprendizagens se tornem fáceis. A resposta é boa sobretudo nos do segundo ano, com quem já tive duas sessões e até parece que já interagimos há mais tempo. Os do primeiro chegaram agora e só tive uma sessão no início da semana.
Ontem até já dizia a um aluno que me interpelou no final da aula que o bom disto não é "dar aulas", é criar encontros onde todos possamos aprender algo. É isso que eu tento e gostaria de conseguir. Às vezes fico com a sensação de chegar lá.
Ah. E outra sensação da semana de quem esteve bastante tempo afastado desta actividade. è como andar de bicicleta.

16 de setembro de 2010

Manifesto



(...) Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Não, não penso: procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero «saber», sei já há tanto tempo… Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E, todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter e uma aparição não se tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver quando lhe apetece? A fidelidade é então só teimosia ou cedência à parte convencional da «nobreza de carácter», da «honradez». Não é isso, não é isso que eu quero. Em que iluminação eu acredito quando falo em nome dela e a imponho (….) aos outros? Falo de cor – a iluminação é então a minha noite de secura. Por isso, quando ela volta eu me abro à sua devassa, à acidez da sua presença. Por isso eu a recebo ainda agora e falo dela e me aqueço e me queimo ao seu lume. Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora de que falo, se aquietam já deserto, o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
(...) E, como tantas outras vezes, de novo me assalta a presença obcecante de mim próprio, esta terrível presença, esta coisa, isto que mora comigo, que é brutalmente vivo, independente, que desaparece, que volta, num jogo de reflexos em que me vejo, me perscruto, me sinto «eu», e breve me foge e está apenas sendo o mundo em roda, estas paredes, estes livros. Fixar bem, apanhar em flagrante esta realidade medonha que emerge de mim, me estonteia, se me some. Fixá-la a essa luz subtil, não a esquecer, mergulhar até onde sou, para que nada de mim se perca no que hei-de decidir, sentir, ser no mundo, para que eu saiba bem o que há a salvar, o que está condenado, para que a construção que vier brote desde as raízes. Canso-me, insisto, canso-me. Um acto de presença não se define, não cabe nas palavras. SOU. Jacto de mim próprio, intimidade comigo, eu, pessoa que é em mim, absurda necessidade de ser, intensidade absoluta no limiar da minha aparição em mim, esta coisa, esta coisa que sou eu, esta individualidade que não quero apenas ver de fora como num espelho mas sentir, ver no seu próprio estar sendo, este irredutível e necessário absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me, esta categórica afirmação de ser que não consegue imaginar o ter nascido, porque o que eu sou não tem limites no puro acto de estar sendo, esta evidência que me aterra quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E estas mãos, estes pés que são meus e não são meus, porque eu sou-os a eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia vejo-os também de cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo…
Vergílio Ferreira (1959). Aparição

Tantas vezes em tantos anos voltei a este trecho. Tantas que já o sinto como meu. Tê-lo-ei roubado ao autor e tornado meu por usucapião. Agora gostaria de aprender a dizê-lo de cor. Percorrê-lo par coeur, ou seja, pelo coração.

13 de setembro de 2010

Uma pessoa educada...

"prezo-me de ser uma pessoa educada..." (por favor não reparem no meu ar de varina ofendida que ponho sempre que me fazem uma crítica) "...e gosto de respeitar os outros" (e deixem-se lá de invejas façam lá as vossas campanhas que eu ando a fazer a minha)

O homem até pode ser educado, mas não anda aqui como mestre sala. A função que desgraçadamente ocupa é política e está sujeita a escrutínio e a crítica e não me lembro deste sujeito alguma vez ter respondido directamente a alguma questão que lhe foi colocada. Nem sobre economia de que tanto saber apregoa.

O pior é que não sei ainda em quem votar para evitar que isto volte a ocupar o lugar de representação dos portugueses.

12 de setembro de 2010

Serão. Seremos.

Ainda não tinha calhado ir aos serões do Convento apesar dos muitos convites do meu amigo. Fui hoje quando se comemorava o quarto aniversário desta iniciativa e fiquei com pena de ter faltado a quatro anos de encontros de gente com a cultura e a arte. Descubro que estou no meio de amigos, alguns já com décadas e sinto-lhes a alegria de fazer coisas e de se darem. Afinal, mais ou menos a mesma matéria com que se faz um poema na vida.
O Daniel, artista de Alte, conta estórias e ainda se lembra da letra de uma cantiga de quando percorria o país nas recolhas da música tradicional e canta "bate padeirinha do meu coração". A Tânia, economista e actriz canta, como quem respira, versos de Florbela e Natália. O Paulo conduz Outras Vozes de impressionante harmonia. O Mário traz-nos um bolero e uma cançaõ da Guiné de protesto ao trabalho escravo infantil. O Beto, angolano, mago das percussões desassossega-nos com ritmos quentes e envolve-nos em coros de Mama Makudelé. O Francisco tira do coro Ideias do Levante pérolas de dedicação.
O meu amigo ganhou esta aposta que enche de muitos amigos e, no final, numa cúmplice concessão à brejeirice ainda comentamos "e muitos mais caberão".
Força companheiro.

11 de setembro de 2010

j'Aziza


Descobri-a numa pequena loja de discos onde apareciam umas preciosidades, há cerca de dez anos. Agarrou-me pelas sonoridades do piano e da voz numa fusão de muitas latitudes dançando num terreiro a que habitualmente chamamos jazz. Ao longo de vários anos fui ouvindo e mostrando aos amigos. Esta noite fui ouvê-la no auditório municipal de Olhão.

A solo com piano. Mais piano que voz. Andou comigo em viagens sucessivas, como num vento encantatório, entre o médio oriente e os ocidentes juntando povos que tanto choram as suas mágoas como gritam a sua felicidade. É a música ao serviço da alma, para ela num sentido espiritual místico, para mim metáfora de todos os sentires das belezas do mundo e da humanidade.

Acompanhou-me o desejo de partilhar este concerto com todas as pessoas de quem gosto. Estive acompanhado por três e senti a falta de ti e de ti e de ti e de ti...



8 de setembro de 2010

Pois, se a casa pia, nunca se ouviu

Imagem roubada aqui

Dizia hoje uma colega no bar comentando com descrédito o pseudo desfecho do caso Casa Pia: pois eu sei o que lhes faria se soubesse que algum deles tinha tocado num filho meu. Fiquei uns segundos a pensar naquilo e relevei o aspecto da justiça por mãos próprias (tendo em conta que se trata de uma católica militante, averbe-se na rubrica do olho por olho, dente por dente) e sou assaltado por uma tenebrosa paisagem mental. E respondi-lhe que aquelas palavras serão impossíveis aplicadas às crianças da Casa Pia. Foram lá parar exactamente por não terem pais ou não os terem capazes de os proteger, de os defender, portanto aquele desabafo fará sentido (?) para pais que o são, para crianças que os têm, não para as da Casa Pia.

Independentemente da trapalhada em que se transformou, daquilo que é visível, o processo CP, há uma evidência clara: os principais responsáveis ficaram de fora. A sociedade deveria acusar todos os agentes do Estado que em seu nome tomaram decisões ou se demitiram de as tomar que permitiram que aquela instituição mantivesse a estrutura e as características obsoletas, as que tiveram conhecimento de abusos e não os denunciaram tornando-se cúmplices de actos criminosos, os que (dizem) não tiveram conhecimento, mas cuja obrigação era ter tido e pactuaram com uma cultura de abuso e violação não apenas de carácter sexual. Essas pessoas, naturalmente, não poderão ser acusadas de pedófilos, mas têm responsabilidades noutros crimes nomeadamente de negligência, de recusa de protecção às vítimas e por aí fora. Porque é que nunca foram acusadas? O processo CP deveria ser muito mais que um caso de pedofilia. E também acho estranho que a justiça tendo identificado, acusado e condenado (vamos ver) uns quantos indivíduos como abusadores de menores, não tenha investigado outras ligações. Então agora temos pedófilos em dedicação exclusiva na Casa Pia? Não cometeram outros abusos? Não apareceu mais ninguém a queixar-se?

Continuo a achar que há uma grande cortina de silêncio cuja finalidade é proteger uns quantos intocáveis.

Há um outro aspecto de que quase ninguém fala e que tem a ver com as vítimas. As vítimas são sempre as vítimas e têm a minha compreensão e solidariedade. Ainda que alguns dos comportamentos possam ter acabado por se tornar por assim dizer, "voluntários" , de prostituição mais ou menos consciente a troco de benefícios materiais, isso não iliba os abusadores, nem os responsáveis pela instituição. Sabe-se que esses comportamentos de uns induzem outros à sua prática. As relações de poder, as trajectórias individuais e de grupos no seio destas instituições, incluindo a gestão das relações priviligiadas com os dirigentes, têm sido objecto de estudo de muitos especialistas ao longo de décadas. Os dirigentes tinem obrigação de saber, procurar saber e proteger quem precisava de ser protegido. Foram nomeados e pagos para isso. O mínimo que teriam que saber era como tinham conseguido dinheiro para comprar os bens (roupas de marca, relógios, gadjets vários...) que exibiam, situações ao que parece várias vezes relatadas por trabalhadores, vigilantes, educadores, aos altos responsáveis e que tudo meteram na gaveta e deram sumiço.

Falta sentar estes senhores e estas senhoras, todos os que calaram as denúncias, no benco dos réus.

A minha revolta é imensamente amarga.

1 de setembro de 2010

Ai a Çultura!...

Tudo começou com este cartaz da campanha "Guimarães: Capital Europeia da Cultura 2012". E logo umas mentes brilhantes que se arrogam de representar os interesses dos algarvios (pelos vistos muito justamente, a avaliar pelo nível das reacções nas caixas de comentários das notícias e dos blogues) vieram a terreiro tercer armas com os promotores vimaranenses.
O cartaz mostra uma praia (supostamente) algarvia e (supostamente) fotografada às 11.30h do dia 2 de Agosto de 2012. Confesso que tenho algumas dúvidas sobre a praia que pela direcção das sombras projectadas poderia ser em qualquer ponto da costa ocidental e seguramente muito mais cedo. Mas isso não é relevante. Relevante é a reacção quer das entidades responsáveis pelo turismo e pela hotelaria do Algarve quer da populaça que está sempre pronta a julgar e apedrejar todos aqueles que no seu magro entender lhes estarão a pisar os calos.
Isto aqui e mais isto e mais aquilo e ainda os comentários a esta posta ilustram bem o estado mental de uma região que se propõe receber turistas e visitantes de todo o mundo.

Toda a gente opina, mas ninguém parece ter a mínima ideia do que está a exibir de si próprio.
1º. A ideia da campanha. É extraordinária, original, provocatória e irónica. Afinal o que se pede a uma campanha publicitária.
2º. As personalidades que se manifestaram, incluindo a maioria dos ilustres cometadores deste blogue, mais não fizeram que reagir à provocação, o que em si só valoriza o mérito da campanha.
3º. Os responsáveis (AHETA e RTA) estiveram bem à altura do provincianismo chauvinista que mantém o Algarve no atavismo crónico. Tem medo de quê? Que Guimarães leve o sol e as águas mornas do Algarve para o Minho?
4º Há felizmente atitudes inteligentes que ficariam bem melhor ao Algarve. Por exemplo: "Obrigado Guimarães por mostrar as belas praias do Algarve. Fiquem descansados que os amantes da cultura não faltarão em Guimarães (depois da praia, claro)". Isto é que me parecia uma resposta com classe.
5º Um evento como Capital Europeia da Cultura é capaz de trazer gente a Portugal e o cartaz até pode ser convidativo: "já agora, dê um salto ao Algarve, onde as praias estão vazias".
Um pouco de sentido de humor resolveria isto muito bem. Mas para o humor é preciso inteligência e não esta burrocracia.

O Algarve também teve a sua capital da cultura em 2005. E ainda hoje me pergunto para que serviu. O que se faz de importante na área da cultura deve pouco a esse evento e até foi em muitos casos ignorado na altura pelos comissários. Estes eventos deveriam ser algo mais que uma razoável programação de espectáculos com nomes sonantes (e seguramente alguns valores indiscutíveis) em regra vindos de fora para nossa delícia.
Isto deveria preocupar-nos mais a todos do que a fotografia de uma praia vazia.