Manhã de carnaval na Ria Formosa
Lembro-me que na minha infância adquiri, nem sei como, o hábito de percorrer de memória todo o meu dia antes de adormecer. Fazia-o todas as noites depois de apagar a luz. Adormecia assim; possivelmente, muitas vezes, muito antes de terminar essa reflexão espontânea. Também me acontecia ficar na cama de manhã a completar ou a reeditar a revisão dos acontecimentos da véspera. Interroguei-me muitas vezes porque o fazia, quase compulsivamente, e para que serviam essas memórias assim guardadas - hoje, numa linguagem de arquivista, diria, devidamente catalogadas e indexadas. Acho que tinha uma memória prodigiosa e era capaz de localizar qualquer evento:
foi no dia que a vizinha Rosa partiu o pé, andava a apanhar azeitona e caiu da oliveira; eu trazia um papel escrito da professora para a mãe ir falar com ela; não dizia para quê, mas eu sabia que era por causa de ainda não ter levado o dinheiro para comprar o livro de religião e moral, 'A nossa história divina' que o padre Octávio tinha levado para a escola, uma caixa cheia deles; nessa tarde briguei com o Luciano e quando rebolámos pelo chão na refrega apanhei com um bafo de mau hálito que cheirava ao mesmo que um alguidar de tripas da matança do porco, no domingo passado.
Os acontecimentos eram assim guardados agarrados uns aos outros e depois vinham com as cerejas e as conversas.
Muito mais tarde compreendi para que serviam afinal essas memórias. Compreendi que as coisas de que nos lembramos também servem para nos fazer felizes e infelizes. Sim, uma coisa e o seu contrário.
E eu que tinha dantes uma memória daquelas estou agora a tentar lembrar-me para que é que comecei a escrever isto. Dever ser... pois, deve ser por isso mesmo.
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