31 de agosto de 2012

Blue moon e outras teorias

Há poéticas espalhadas nas notícias a cruzar a ciência do espaço com outras órbitas e trajectórias do amor. Achei-me já tantas vezes a navegar por algumas dessas distintas poéticas incluindo as mais óbvias e não desdenho nada de quem, mão na mão tece promessas de amor feliz com a lua por testemunha.
Aprendi de miúdo a reconhecer e a quase venerar o luar de Agosto, aquele que nos permitia brincar na rua até altas horas e jogar com as sombras. Saberá disto quem cresceu no campo e brincava em terreiros desprovidos de iluminaçao pública. Na escola aprendi coisas mágicas e saberes deliciosos sobre a lua. Compreender as fases da lua, a sua eclíptica e tudo o que envolve o que é aparente e inaparente neste satélite, abriu-me um largo campo de metáforas que vão muito para além dos sortilégios e juras de amor.
Hoje está na noite o que se chama uma "blue moon" (foi tema de uma canção que também ouvia na rádio - não sabia o que dizia a letra, mas era sempre anunciada como "lua azul") e quase que a vi nascer. Apanhei-a assim, a partir do cais de Faro, a subir entre Olhão e a ilha do Farol.
Assim sendo, se hoje alguém se sentir personagem de um romance, estrofe de um poema, parte de uma sinfonia, movimento de um bailado... devem ser mesmo os famosos efeitos da lua.

O crepúsculo de hoje no cais.

19 de junho de 2012

Questões de tempo

Illiers-Combray                                                                                               Imagem daqui

À la recherche du temps perdu é um longo romance de Marcel Proust que nunca li e não sei se conseguirei ler alguma vez. Apesar de a tentação ser grande, estou mais capaz de seguir aquilo que julgo ser a própria sugestão proustiana: não me apetece perder tempo com tanta literatura.
Tudo isto porque venho de ler o livro de Alain de Botton, Como Proust pode mudar a sua vida, onde aquela obra é profusamente citada e comentada.
Um aspecto comentado por Botton relacionado com alguns sintomas de "leitor excessivamente reverente e dependente" é a atracção por visitar Illiers-Combray. Illiers era uma pequena povoação de pouco mais de três mil habitantes onde Proust passava férias de verão em criança e também algumas vezes na adolescência e que utilizou  como cenário ficcional no seu romance chamando-lhe Combray. Desde 1971 (centenário do nascimento de Proust), a cidadezinha chama-se oficialmente Illiers-Combray e tem adoptado uma espécie de folclore com elementos retirados do romance. Assim, é possível ver à porta da pâtisserie-confisserie, uma placa indicando "a casa onde a tia Léonie [personagem do romance] costumava comprar as suas madalenas". É claro que isto é bom para o negócio e os leitores-turistas não deixam de trazer uma embalagem das celebrizadas madalenas literárias.
Há dias, ouvi falar de um "efeito boomerang" a propósito de algumas tradições (neste caso as marchas populares de Lisboa) que parecem ter nascido ali, mas que na realidade vieram de um outro sítio ou foram criadas por alguém em determinado momento e com um propósito determinado e com o passar do tempo tornam-se ícones culturais de uma população. O exemplo talvez mais eloquente em Portugal é o que se passa com os chamados "ranchos folclóricos". Mais ou menos "desenhados" pelos ideólogos do Estado Novo e depois expontaneamente replicados, incorporando temas criados para o cinema ou para o teatro de revista, tornam-se verdadeiros representantes dos vários tipos de portugueses de acordo com a sua região: o vira é do Minho, o fandango do Ribatejo e o corridinho do Algarve, mesmo que seja aquele chamado 'bailo pulado' para mostrar os culottes da moda francesa do cabaret e do vaudeville.

19 de março de 2012

Gaivotas no palco

Atenção banhistas surfistas maristas praístas... E outros artistas Eu Espectador imaginário da praia Eu Também Não sei o que é o algarve E sei Ou parece-me Que ninguém saberá o que é o algarve Mas qual algarve mô O da vila de ameijoas O das mouras encantadas O do mar feito num cão Eu não sei o que é o algarve É por isso que o posso inventar pelos cheiros dos orégãos no molho dos caracóis de maio Pelos olhos dos poetas de cá e outros que vieram cá para se deixarem encantar pelo branco da cal Ou por uma noturna maré de plâncton
Vou continuar à procura desse algarve Por esses palcos fora Mesmo que a primavera anuncie a maior das tempestades e terramotos

11 de março de 2012

Poetas, livreiros e outros desassossegos


Fui lá pela curiosidade depois de ouvir falar (Pacheco Pereira, na SICnotícias) desta livraria e deste poeta (entre outras coisas) e seu fundador.
Lawrence Ferlinghetti é um dos poetas da beat generation do qual sei muito pouco ainda. Mas deixo aqui uma ponta para, mais tarde, puxar e ir até a esses tempos de criatividade insurgente e poder trazer outros.

Para já fica aqui um poema sobre a América, o seu sistema, os governantes e o povo eleitor.


PÁSSARO COM DUAS ASAS DIREITAS
E agora o nosso governo
um pássaro com duas asas direitas
voa de um lado para o outro
enquanto nós vamos tendo a nossa sessãozita de jogos & diversão
em cada eleição
como se realmente importasse quem é o piloto
do avião presidencial
(Eles alternam-se, estúpido!)
Enquanto esta ave com duas asas direitas
voa a direito com sua tripulação corporativa
E este ano é o Grande Filme do Cowboy no cockpit
E no próximo o grande piloto Bush
E agora o Kid Chameleone continua a trocar o emblema do boné de capitão
e agora é um burro e agora um elefante
e agora, uma espécie de burrefante
E agora podemos reconhecer os dois tripulantes
o que conseguiu um contrato com América
e um outro, um tal gringo infeliz
muito ocupado de chave-inglesa na mão
a reparar as partes essenciais do motor
e os sistemas de suporte de vida
e com uma grande e gorda mangueira
a chupar o combustível para tanques privados
E enquanto isso nós apenas ocupamos
assentos de passageiro
sem pára-quedas
atentos a todas as informações de que está apto para voar
pelo sistema unidirecional de PA
sobre como o contrato com a América
é realmente bom para nós etc.
A todo momento o avião atafulha-se
com o seu manifesto destino
pós-moderno

Lawrence Ferlinghetti
(tradução à moda da casa)



imagem daqui


BIRD WITH TWO RIGHT WINGS
And now our government
a bird with two right wings
flies on from zone to zone
while we go on having our little fun & games
at each election
as if it really mattered who the pilot is
of Air Force One
(They're interchangeable, stupid!)
While this bird with two right wings
flies right on with its corporate flight crew
And this year its the Great Movie Cowboy in the cockpit
And next year its the great Bush pilot
And now its the Chameleon Kid
and he keeps changing the logo on his captains cap
and now its a donkey and now an elephant
and now some kind of donkephant
And now we recognize two of the crew
who took out a contract on America
and one is a certain gringo wretch
who's busy monkeywrenching
crucial parts of the engine
and its life-support systems
and they got a big fat hose
to siphon off the fuel to privatized tanks
And all the while we just sit there
in the passenger seats
without parachutes
listening to all the news that's fit to air
over the one-way PA system
about how the contract on America
is really good for us etcetera
As all the while the plane lumbers on
into its postmodern
manifest destiny


Lawrence Ferlinghetti

28 de fevereiro de 2012

Cultivadas c'a fé












Se aquela que é Cristas e ministra assim de tão plural ministério sabe disto ainda me contrata para sacristão.


Ora, são...
(São, de Assunção se me é permitida a familiaridade e também de oração que é seu tão proclamado e profundo mister aplicado à política agrícola e também à dança da chuva)
São batatas, senhora!
Batatas doces em fevereiro?
Pois são assim os milagres... Na realidade, tinha lá plantado outra coisa para dar aos pobrezinhos. Para eles fumarem e esquecerem as suas angústias. Mas eis que chega a inspecção ministerial e místico-agrícola e o milagre veio mesmo a calhar.

Batatas doces (Ipomoea batatas) colhidas hoje no quintal da Horta.
Pertencem à Família das convolvuláceas, mas não me importo. Não devemos discriminar ninguém.

5 de janeiro de 2012

No rasto de outros poetas

.




Gunnar Harding nasceu na Suécia em 1940, foi músico de jazz , estudou pintura e aos 27 anos iniciou-se na escrita.
















Achei este poema traduzido em inglês porelo novaiorquino Roger Greenwald. Não vi o original em sueco e, mesmo que o visse, ficaria com a mesma dúvida e a mesma fantasia: o que acontece a um poema depois de passar por várias línguas e tradutores? como voltaria ele à língua em que foi escrito?




Eu gosto das palavras em várias línguas e gostaria de saber mais dessas línguas todas para ler a história que cada palavra conta na sua singularidade.












A cidade perfeita
(a partir da versão em inglês de Roger Greenwald)




Uma quarta-feira três voos para fevereiro
ela tinha feito a cama com lençóis limpos,
abertas as cortinas,
da janela donde não se vê o céu
mas um outro edifício.


Havia uma tempestade que passou.
Tanto sangue em movimento
através dos seus corpos.


Ela flutua nos seus cabelos em cascata.
A cidade lá fora está vazia,
perfeita e vazia.
No seu centro fica a sua casa,
tecendo silêncio pelas ruas.



A escuridão dos poços espera
ser içada, vir acima
em baldes silentes
mas a frieza do mármore não se pode apagar.


Estamos apenas no início da história.
Um dia o sangue fluirá a partir da brancura.





The Perfect City
Translated by Roger Greenwald



One Wednesday three flights up in February
she had made the bed with clean sheets,
drawn the curtains,
for the window did not face the sky
but another building.


There was a storm that passed through.
So much blood in motion
through their bodies.


She floats amid her cascading hair.
The city outside is empty,
perfect and empty.
At its center stands their house,
casting silence through the streets.


Darkness waits in wells
to be hauled up, hauled upin
silent buckets
but the coldness of marble cannot be quenched.


We are only at the beginning of the story.
One day blood will flow from the whiteness.


Gunnar Harding





3 de janeiro de 2012

De mim para ti




i carry your heart with me (i carry it in
my heart) i am never without it (anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling)
i fear
no fate (for you are my fate, my sweet) i want
no world (for beautiful you are my world, my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you



here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart
i carry your heart(i carry it in my heart)






E. E. Cummings





trago comigo o teu coração (trago-o dentro do
meu coração) nunca estou sem ele (onde quer
que eu vá, tu vais, minha querida; e tudo que é feito
apenas por mim és tu que o fazes, minha querida)
não temo
nenhum destino (pois o meu destino és tu, doçura) não quero
nenhum mundo (para beleza és o meu mundo, minha verdade)
e és tu tudo o que uma lua sempre significou
e aquilo que um sol sempre cantará és tu



eis o mais profundo segredo que ninguém conhece
(eis a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida; que cresce
maior do que a alma pode esperar ou a mente pode esconder)
e esta é a maravilha que mantém as estrelas separadas
trago comigo o teu coração (trago-o dentro do meu coração)



(tradução minha)






Foi na hora

The hour é uma série a passar na Fox Life que desenrola uma trama de jogos de poder, espionagem, sedução e jornalismo no interior da BBC dos anos 50. Talvez a passasse em branco, não fora os nossos serões conjuntos em que o comando da televisão só trabalha para as séries da Fox Life e um ou outro telejornal, mas passei a seguir esta interessante série e até já sei o dia em que dá. A minha rapariga também me aconselha a que dá a seguir, mas isso já é muito para mim e enquanto essa corria, fui procurar um poema do Cummings que o Freddie diz à Bel, do qual retive o último verso: nobody, not even the rain, has such small hands.
O Google deu-me o que queria e mais uma tradução brasileira e uma versão musicada e cantada por Zeca Baleiro. Da tradução que encontrei que não gostei particularmente e resolvi meter-me a um atrevimento que ainda não tinha ousado. Assim, com ajuda do Oxford Advanced Learner's Dictionary e de algumas ferramentas electrónicas fui-me a ele.



Imagem daqui


somewhere i have never travelled,gladly beyond

somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously) her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands


(E. E. Cummings)


algures, aonde nunca fui, para além do prazer
de qualquer experiência, os teus olhos revelam o silêncio:
no teu mais frágil gesto há coisas que me prendem
ou que não consigo tocar por estarem demasiado perto

o teu mais leve olhar liberta-me facilmente
apesar de me ter fechado como os dedos,
tu abres-me sempre pétala a pétala tal como Primavera abre
(tocando hábil, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se o teu desejo é fechar-me, eu e
a minha vida fechar-nos-emos em beleza, de repente,
tal como o coração desta flor imagina
a neve a descer cuidadosa em toda a parte;

nada do que podemos perceber neste mundo iguala
o poder da tua intensa fragilidade: cuja textura
me obriga com a cor dos seus países,
a trocar a morte e a eternidade em cada respiração.

(não sei o que há em ti que fecha
e abre; apenas algo em mim compreende
que a voz dos teus olhos é mais profunda do que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas


Isto não é nada fácil e, além do mais, não sei assim tanto inglês para me armar em tradutor, ainda por cima de poesia. Há algumas ideias de difícil apreensão no original e não tenho nada a certeza de ter encontrado o equivalente em português. Ainda assim, gosto do resultado e sobretudo da aprendizagem que é esta experiência de traduzir poesia.

2 de janeiro de 2012

Doze passas

Sou muito mau para rituais. Talvez por isso me sinta sempre do lado da subversão, até daqueles mais inocentes. Vale o tempo de encontro com famílias e amigos, o tempo que passamos à mesa, lugar de excelência para brotarem grandes ideias. Já tenho chamado a estas refeições "seminários" porque muitas vezes é o que verdadeiramente acontece pelo meio de comida tão interculturalmente variada que pode ir do caril de camarão à açorda de bacalhau, das rabanadas ao cheesecake, do vinho de Pias ao de Palmela, do CR&F ao Armagnac. Trocam-se saberes marinheiros, agricultores, literários por histórias de viagens e receitas de cozinha e outras.
O resto cumpre-se, por mim sem convicção nenhuma, porque dos rituais só acho graça mesmo é à sua coreografia.
A coreografia da passagem de ano é algo confusa e reveste-se de demasiada complexidade para que a aprenda, de modo que fico-me por uma versão mais simplificada apenas para celebrar a festa.
Celebro a entrada no novo ano com um abraço a cada um dos presentes com o desejo sincero de que tenham a saúde, a força e a inteligência para vencer os obstáculos (são tantos) e ainda lhes sobre o suficiente para ser felizes. Também toco os copos e como as passas, mas sem isso também passava.
Não me entendo muito bem com esse enredo de associar um desejo a cada passa. Não sei guardar desejos assim para um dia, ou uma noite, e lembrar-me deles todos em cerca de um minuto. Nunca consegui juntar doze desejos, de modo que sobram sempre passas.
É claro que tenho desejos, aspirações, votos, projectos, vontades... E desejo ser uma pessoa melhor, ser capaz de amar mais, ser mais generoso com os outros, saber mais, ter mais tempo para dedicar ao mundo... E isso é também coisa de todos os dias, tirando aqueles dias em que não me apetece nada, porque também os tenho.
Este ano, fingindo que acredito nessa energia concentrada que ajuda a realizar desejos, juntei as passas todas para o efeito ser mais forte, meti-as todas de uma vez na boca e engoli-as com meio copo de champanhe com uma ideia na cabeça:
"Que bom seria que este mundo mudasse e deixasse de ter lugar para os que nos têm vindo a empobrecer materialmente e, sobretudo, a matar-nos a esperança".