27 de março de 2008

AmoTeAtro

Descobri o teatro na infância a brincar no quintal da minha casa. Fiquei muitas vezes sozinho em casa durante as manhãs enquanto os meus pais se levantavam cedo para ir ao campo apanhar ou milho ou as favas ou a aveia que eram géneros que tinham que ser carregados antes do sol nascer para que não caíssem os grãos pelo caminho antes da debulha. Eu ficava a dormir e levantava-me e comia e brincava por ali apenas sob a vigilância de uma prima vizinha que escutava os meus passos e gestos do outro lado do muro que separava os dois páteos. Os brinquedos e outros entreténs eram poucos e muito rudimentares e assim sobrava muito para a invenção e a imaginação. Nunca me senti sozinho. Inventava personagens ou simplesmente reproduzia cenas que presenciava. Outras vezes aprumava um pau no chão com uma batata espetada a fazer de microfone e cantava as cantigas que ouvia ou inventava. Tudo isto para um generoso público constituído por um monte de abóboras ou por meia dúzia de vasos de flores (adorava aquela hortência enorme, junto à parede), para além da vizinha-prima que tinha uma monitorização permanente do meu estar sem sair de casa.
Mais tarde, na adolescência voltei a descobrir o teatro e aí era já amor e amador e combate. Valeu uma advertência do comandante da GNR, uma ficha na PIDE, mas o que ficou mesmo foi a experiência de um viver colectivo da construção de uma forma de expressão artística e de dizer algumas coisas que não podiam ser ditas de outra forma.
Depois seguiu-se uma experiência semiprofissional e uma outra aprendizagem. Contactei com pessoas que sabiam muito e tinham uma formação e experiência diferente. Talvez não tenha aprendido o suficiente ou achado em mim bastante talento e deixei que vida me fizesse seguir outro rumo. Mas o "bichinho", como todos dizem, ficou cá e sempre que vou ao teatro passeio-me pelo palco entre os actores, aproprio-me das "deixas" e antecipo as "falas" na minha cabeça.

Hoje, dia mundial do Teatro, vou dizê-lo com flores:


3 comentários:

HFR disse...

O texto é muito bonito e, desculpa, mas lembro-me de ti de soldado raso vestido, à porta do Lethes, a aguentar as piadas e os pacotes amachucados de tabaco sobre os ombros e a espingarda. A peça nunca mais começava, as portas nunca mais abriam e tu, impávido, sabedor e displicente como um verdadeiro militar: "balas civis não matam militares!". Porra, belos tempos estes.
Abraço do Helder.

CCF disse...

Gostei muito, estás inteiro dentro do texto.
~CC~

Gregório Salvaterra disse...

Helder, grande amigo de caminhadas e memórias comuns.
Pior que o Lethes foi Lagos. Havia um problema com a iluminação e o happening teve prolongamento para empatar o público (tenho ido aos treinos de bancada, vês?) e só me faltou dar uns tiros para o ar para conter os ímpetos.
Porra, pá!
Toma lá um abraço

~CC~, minha querida.
Obrigado.
Às vezes consigo sair assim de dentro de mim e deixar-me ir na corrente das palavras.
Beijotracinhote