4 de janeiro de 2009

Deleituras

Eu que me vejo ateu já devo ter lido mais da Bíblia que muitos dos que se afirmam crentes (ou querentes que exista um deus) e com genuíno interesse em entender o significado daqueles escritos, conjugando-os com o que sei da história da antiguidade e também com as estórias que fui ouvindo da tradição popular. Quando, do Saramago, li O Evangelho segundo Jesus Cristo, tentei encontrar no Novo Testamento a correspondência daquelas narrativas que li em simultâneo. Entre duas ficções, a do Saramago tem, para mim uma qualidade literária incomparável. No entanto, e de acordo com a minha visão não religiosa dos escritos, ditos, "sagrados" é possível, a partir deles, talvez entender o entendimento que os crentes mais fanáticos têm do mundo.

O mundo está em guerra. Muita desta guerra é mais ou menos religiosa.

A mulher que eu amo e que diz amar em mim a "infinita curiosidade" ofereceu-me pelo natal um livro delicioso de José Tolentino Mendonça, de quem já conhecia vagamente alguma poesia, chamado A leitura infinita: Bíblia e interpretação. O título não engana ninguém. A gente sabe logo ao que vem.
A páginas 58, reza (!) assim:

«O estatuto do texto sagrado confirma-o como geneticamente plural: ele junta o elemento histórico com a intencionalidade ampla e descontínua que é necessário perscutar. O sujeito desta perscutação é o leitor, elemento requerido, suposto e esperado pelo próprio texto. O acto da leitura é uma espécie de pacto selado entre ambos. Por um lado, o leitor (não um qualquer, mas aquele dotado de competência) activa a mecânica textual, preenchendo os espaços vazios e indeterminados que vão depois permitir compreender o texto. Há uma história do texto que o leitor é chamado a explorar com o auxílio de instrumentos diversificados e complementares. Ele não pode ignorar a proveniência, a cultura, a linguagem, a composição ou a finalidade do texto. Sem esse levantamento dificilmente pode chegar-se à compreensão» (*)

Eu diria que isto vale para toda a literatura. Mas, pronto. Lá fui eu, de novo, mergulhar na Bíblia, assim ao acaso e encontro:
Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e os fins da terra por tua possessão.
Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os despedaçarás como a um vaso de oleiro.
(Salmos 2: 8,9)

Não posso deixar de pensar que anda aí muita gente a seguir isto à letra.


(*)José Tolentino Mendonça. A leitura infinita: Bíblia e interpretação. Lisboa. Assírio & Alvim. 2008.

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