Há um amor comum a papéis pintados com tinta que às vezes nos leva para dentro de casas com cheiro a estórias e viagens escritas nas prateleiras. Procurávamos o último livro do Carlos Ruiz Zafón que tu nas tuas prodigiosas sínteses já chamavas a Sombra do Anjo e entrámos naquela perigosa livraria sobre a qual já aqui escrevi por duas vezes. Aquele caos é sedutor e apetece-nos ficar ali a remexer e a descobrir coisas que provavelmente já não existem noutros sítios. Os livros têm o preço escrito a lápis no canto da primeira folha e não têm aquelas etiquetas colantes com código de barras. E depois é uma livraria com um livreiro lá dentro que tem sempre uma história para contar, um comentário, uma reflexão sobre o mundo e a vida.
É impossível ir lá e não me lembrar com saudades de um outro livreiro e uma outra livraria que frequentei durante anos, na minha adolescência em Santarém. A Livraria Apolo do Manuel Castela era, pelos anos 70, uma verdadeira Escola-ATL- Sala de Estudo- AfterAulas para um vasto grupo de jovens que gostavam de livros, de música, de tertúlia e de aprender com os mais velhos. A maior parte de nós não tinha dinheiro para comprar livros ou discos, mas passávamos lá tardes inteiras a ler, a ouvir música, ou simplesmente a conversar. O Castela era assim uma espécie de tio da malta e deixava-nos ler os livros sabendo que não os iríamos comprar. E conversava connosco, e fazia perguntas sobre o que líamos e ia buscar outro e aconselhava a leitura. De vez em quando queixava-se de que alguém tinha roubado (acho que ele dizia levado) um livro, mas até parecia encarar isso como uma espécie de taxa para a elevação cultural. Pior era quando a Pide passava por lá e apreendia livros «comunistas» e discos do Zeca e outros revolucionários; aí ficava fulo e praguejava o dia todo.
O Castela morreu há cerca de 25 anos. Não sei se aquela cidade lhe fez alguma homenagem. Mas, se não fez, devia. Também eu lhe devo boa parte do gosto pelos livros, do gosto musical e do desejo de saber.
Para a memória.
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1 comentário:
Este de que falas, devia era ser homenageado agora pelo modo único como está há anos e anos nesta cidade desta forma singular. Mas sei o que podemos fazer melhor por ele: ir lá comprar livros, gastando com gosto mais um euro ou dois do que no supermercado.
Beijo
~CC~
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