16 de dezembro de 2010

Prodígios do campus


Uma personagem levantou-se e disse. Isto é uma história.
E eu disse. Sim. É uma história.
Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos.
A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo.
E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento.
Mas será mais eloquente. Para os que crêm nas palavras.
Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar.
Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez.
O breve tempo de uma demonstração.

Lídia Jorge - O dia dos prodígios


Foi ontem. Ou foi há trinta anos. Acabado de chegar a esta terra já tinha percorrido uma boa procura das tradições. Dos falares e cantares que em alguns sítios parecem ser uma e a mesma coisa. Das pragas dos marítimos às rezas a santa bárbara para afastar trovoadas lá para onde nem cresça ramo verde ou alma cr'stã. Das toadas do 'leva' aos romance carolígeo. Da ti' Bi' Fitas aos Velhos da Torre. Da Pinha de Maios e 'abarcas' às charolas. Dos comeres da serra e do mar. Destas terras de gente marafada, afeleada nos seus afazeres, alvoreada com levantes, suestes, besaranhas e sirocos capazes de xaringar um pacato montanhero. Ah, punhão. Mundo. Mesmo que não se acredite em assombrações, encantamentos e se pense que esta ou aquela estória contada naquele falar de boca cheia de Monchique ou nas vogais dobradas do barlavento. Debe. Tem que haver aqui algo de mágico e prodigioso por estas terras e gentes que ainda resiste como mouras encantadas aí pelos poços e noras. Móce. Foi mesmo uma coisa desmarcada.


Lídia Jorge recebeu ontem o grau de doutor honoris causa na Universidade do Algarve. A laudatio pelo vice-reitor Pedro Ferré e o agradecimento da escritora foram no seu conjunto uma das mais emocionantes lições de literatura e ao mesmo tempo uma viagem à minha infância, aos livros e às searas. O meu barrocal era a charneca e o mar sempre foi o Tejo. E pelo Tejo vai-se para o mundo.

Ontem li todos os livros de Lídia Jorge, mesmo os que nunca abri. Talvez por um mero bom acaso, daqueles que nem uma equação diferencial estocástica (os meus amigos matemáticos vão adorar esta) pode admitir como hipótese prever, eu tenha assistido ao Dia dos prodígios em teatro, no Trindade e tenha ido procurar o livro da cobra voadora, com as páginas amarelecidas e tenha iniciado a sua releitura quase trinta anos depois e tenha tido o privilégio, o prodigioso privilégio de poder participar nesta festa que, apesar de todo o cerimonial académico cheio de rituais de liturgia paramentada, foi por largos momentos um largo terreiro de ouvir e contar histórias estórias.

2 comentários:

CCF disse...

E eu a ler-te e a ouvir os meus primos a correr pelas ruas de Olhão, a ouvi-los dizer "xoxa"(ou será xocha?...como não vem no dicionário...) e eu sem sequer saber o que era...
O meu mergulho nessas terras foi quase de afundar...e acho que só hoje sei o quanto me fez bem, o quanto foi importante.

E a Lídia merece todas, todas as homenagens...

E tu, um beijo
~CC~

tempus fugit à pressa disse...

se a amêndoa está xôxa está xôxa
nã se deve dizer em voz alta parece mal

histerias és tó rias

embandeirar em arco

a Lídia Jorge é o Fernando Namora do século XXI
e ruma ao mesmo destino

da elegia ao esquecimento