23 de junho de 2021

Gott ist tot

 Tu é que morreste, ó Nietzsche. E viva o Nietzsche a rir às gargalhadas no meio das tragédias gregas!

O Nietzsche enfiou os dedos nas chagas de cristo crucificado. Escarafunchou sadicamente e o gajo nem se mexeu. O cristo não estava vacinado e, sabe-se hoje, aquilo de pregos ferrugentos dá tétano e mata, mesmo sem os respectivos opistótonos que pela sua espectularidade  são sempre uma boa atracção. Foi, não tanto por isso que muita gente julgou tratar-se de deus, mas porque umas pessoas importantes e donos da comunicação social da altura disseram que estava-se mesmo a ver e que o algodão não engana. 

O Nietzsche escancarou a porta para o homem (obviamente, branco) matar o pai (também, obviamente, branco) todo poderoso e protector e salvador e atrever-se, enfim, a conceber-se livre da angústia associada à impossibilidade de pensamento autónomo.

Daí a espalhar que deus está morto ainda vai uma certa distância, mesmo que hoje esteja muito mitigada pelas super-mega autoestradas e cinco gês. Sempre são uns quantos terabites de metafísica!

Lembro-me de uma história que ouvi ou li, não sei a quem, nem quando, nem onde, e que falava de um homem a quem chamavam louco por andar de candeias acesas durante o dia. Dizia que procurava deus e toda a gente se ria. No entanto, entre os não crentes alguém disse: "não vemos deus nenhum; será que o perdemos?"; e, logo outro: "terá fugido como uma criança?"; "se calhar está para aí escondido...". Houve quem dissesse que poderia ter emigrado, embarcado nesses botes que atravessam o mediterrâneo... Depois fez-se um longo silêncio. Até que um gajo de cabelos e barbas já bastante brancas, envergando uma camisola da selecção muito debotada e com dois ou três buracos elevou a voz de modo a projectá-la bem e gritou: "deus, sabem onde está?; matámo-lo!, somos todos assassinos!". Posto isto, olhou à volta e estavam todos a dormir. Abriu uma lata de sardinhas e por ali ficou.


21 de junho de 2021

conta de gerência


dissoneto de quebrantos remendados
(versos quase-bárbaros e meio pasmados)
para o afonso e mais altas esferas

 atirava o pau ao gato sem rancor
quando em menino descalçava as botas
esbaforido pelas ondas de calor

 pouco sabendo de petiscos clandestinos
temperados em suspensão de sol maior
ensaiava danças de passos pequeninos 

no tide o ascensor social coxeava
bainhas ao viés por cima das ourelas
compunham-se de soslaios e a gente a vê-las
com palha d’aço de bigodes ir à fava
 

no bolso andava a fisga e a navalha
papel rasgado com besouros enrolados
filas de letras inclinadas dos recados
que eram ninhos no olhar que nunca falha
 

lídia era a outra margem do ribeiro
e o piquenique de burgueses no pinhal
do marquês da lagoalva era o principal
principiando a florir esse primeiro
 

beijo e pele para além da prescrição
da tal pestilenta indústria da fé
e tudo o que era longe ficou mais ao pé
das águas livres que um dia acharão
 

a noite abafava os passos na esquina
dobrados ouvidos e olhos delatores
às palavras de fogo-posto onde germina
 

o rumor abrindo a límpida madrugada
é já um fervilhar de veias e abraços
e uma canção na urgência de ser gritada

 

e o que mais houver se acrescentará 

08.06.2021

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 A chave perdida já vai em sete camadas de ferrugem. Difícil foi encontrá-la no meio de tantos palheiros mais ou menos digitais onde a virtualidade se torna bem mais densa que a bruma da memória.

Venho Gregório e sabe-se lá com que inconsequente missão.